O argentino Jorge Mario Bergoglio desembarcou na ilha de Lampedusa, onde a Europa mais se aproxima da África, e foi envolvido por refugiados etíopes, eritreus e somalis, que haviam sido resgatados no Mar Mediterrâneo. Queria ouvi-los. Pouco importava se fossem católicos. Queria encontrar as periferias. Era a primeira viagem de seu pontificado. Ela criaria uma imagem que acompanharia Francisco até o fim: a do papa que ia às fronteiras do mundo e suscitava expectativas de reforma. Quase ninguém compreendeu que a mudança, para o pontífice, não estava nos dogmas, mas no acolhimento, na ternura de sua pastoral.
Esse argentino, de 88 anos, morreu nesta segunda-feira, 21, em Roma, menos de um mês após deixar o hospital, onde ficou internado para tratar de uma pneumonia dupla. Um dia antes da morte, ele apareceu em público no Vaticano em uma missa de Páscoa, quando fez a última saudação aos fiéis. Uma outra doença pulmonar, sequela da gripe asiática de 1957, mudara seu destino ao impedir o ainda jovem jesuíta de partir em missão ao Japão. Ele teve de extrair parte do pulmão direito, o que – acreditava-se – o incapacitaria para o trabalho no Oriente.
Francisco permaneceu na Argentina, onde foi professor do Colégio da Imaculada Conceição, na cidade de Santa Fé, e, depois, provincial da Companhia de Jesus na Argentina, bispo auxiliar e arcebispo de Buenos Aires até o conclave de 2013, quando foi eleito pelos cardeais o sucessor de Bento XVI. “Não se esqueça dos pobres”, disse-lhe, então, o amigo e cardeal brasileiro d. Cláudio Hummes. Francisco não se esqueceu. A memória, para ele, não era só o que se lembra, mas o que nos cerca, um presente que não acaba. “Parece ontem e no entanto é amanhã.”
Em Lampedusa, naquele 8 de julho de 2013, o papa ouviu os relatos de suplícios de quem, para fugir de guerras, arriscara na travessia a única coisa que ainda podia perder: a vida. Francisco, o papa que veio da borda do mundo, jogou flores ao Mediterrâneo e subiu em um altar, montado em um pequeno barco de pesca, para se dirigir à multidão. “Caim, onde está o teu irmão! (Gênesis 4:9)” Repetiu a frase diversas vezes, enquanto a audiência o acompanhava em silêncio. “Caim, onde está o teu irmão! Ouço a voz do sangue dele gritar até mim.”
Lembrou-se ali da comédia Fuente Ovejuna, a obra de Lope de Vega, do Siglo de Oro espanhol, que conta a história da cidade que se livrou de um tirano. Na peça, quando o juiz quer saber quem cometera o crime, todos respondem: “Fuente Ovejuna, señor”. “Ainda hoje essa pergunta se impõe com força: quem é o responsável por esse sangue? Ninguém! Todos nós respondemos: eu não, eu não devo estar envolvido, devem ser os outros”, escreveu Francisco.
A viagem não estava programada, mas a sucessão de naufrágios e mortes de africanos despertou sua atenção. Bergoglio cunhou ali uma expressão para designar a indiferença do mundo com o destino das vítimas: “globalização da indiferença”. Queria que as novas fronteiras econômicas não abandonassem ninguém nas bordas do mundo. O que esperar de um papa jesuíta se não uma igreja que fosse missionária?
das periferias e do fim dos muros em um mundo ameaçado pela crise climática, o que o levaria aos textos da exortação apostólica Evangelii Gaudium e das encíclicas Laudato Sì e Fratelli Tutti. Por isso, despertaria a fúria e o desprezo de conservadores e de políticos arautos da anti-imigração.
Fazia, então, pouco mais de dois meses que Francisco dirigia a Igreja Católica, após a renúncia de Bento XVI, a primeira de um papa em 600 anos. Era também o primeiro pontífice nascido fora da Europa em 1.300 anos, bem como o primeiro a escrever uma autobiografia: Esperança. Ali Bergoglio mostrou como a história de sua família, de imigrantes piemonteses que deixaram a Itália após a Grande Guerra, marcara profundamente a sua vida. E o seu papado.
Francisco conta que seus avós se salvaram por pouco do naufrágio do navio Principessa Mafalda, o “Titanic italiano”, que afundou ao largo da Bahia, quando se dirigia a Buenos Aires, em 1927. Giovanni Bergoglio e Rosa Vasallo haviam comprado passagens, mas não embarcaram. O papa cresceu ouvindo essa e outras histórias dos tragados pelo oceano.
“Eu também poderia estar entre os descartados de hoje, tanto que sempre trago uma pergunta no coração: por que eles e não eu?” questionou-se o pontífice em suas memórias. “Também nasci em uma família de imigrantes; meu pai, meu avô, minha avó, como tantos outros italianos, partiram para a Argentina e conheceram o destino de quem fica sem nada”, escreveu.
O 266.º papa nasceu em Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936. Era o primeiro dos cinco filhos do contador Mario José Francisco Bergoglio e da dona de casa Regina Maria Sivori. A família era toda italiana e ligada à Ação Católica, cujas sedes foram fechadas pelos fascistas de Benito Mussolini, em meio às críticas do papa Pio XI às leis raciais do regime, consideradas uma heresia pelo beato Alfredo Ildefonso Schuster, o arcebispo de Milão.
Ao 21 anos, esse torcedor do San Lorenzo de Almagro e futuro pontífice entrou no seminário arquidiocesano. Foi professor de literatura antes de ser ordenado padre, em 13 de dezembro de 1969. Admirava Dostoiévski, Dante Alighieri e Jorge Luis Borges. Dizia ter lido quatro vezes Os noivos, do italiano Alessandro Manzoni. Amava o tango e música clássica, bem como os filmes do neorrealismo italiano, com Rossellini, Di Sica e Visconti. E, é claro, o Fellini de La Dolce Vita
Francisco levaria ao seu papado uma nova visão sobre a santidade da igreja militante de que fala Santo Inácio de Loyola. Em Fratelli Tutti, ele explicou o que seria ter um “coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião”. Para tanto, usou um episódio da vida de São Francisco de Assis: a visita ao sultão Malik-al-Kamil, no Egito. “Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos.”
O pontífice pedia aos católicos e ao mundo o mesmo que o santo aos seus discípulos: “Sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis’, não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus”. O mesmo valia para a agressão à Terra: ”Que espetáculo desolador é ver a destruição das matas e das grandes florestas, que as populações nativas souberam respeitar e preservar por séculos”. E para dominações culturais: “Confundir unidade com uniformidade é uma tentação diabólica”.
Francisco fazia sua pregação em um tempo em que se aposta no conflito entre as civilizações e em um mundo onde o ódio e a aporofobia se tornaram comuns. “Aos pobres não se perdoa nada, nem a própria pobreza”, escreveu. E completou: “Chegou-se ao ponto de teorizar e implementar uma arquitetura hostil para se desembaraçar de sua presença, até mesmo de vê-los nas rua”.
A indiferença o repugnava. E o fazia lembrar de outros episódios, de quando o arbítrio “devorou seu povo como se fosse pão”. Na ditadura militar argentina (1976-1983), Bergoglio intercedeu por jesuítas presos e ajudou a comunista Esther Ballestrino de Careaga. Ela participava na Igreja de Santa Cruz do grupo que deu origem às Mães da Praça de Maio. Em dezembro de 1977, Esther, as freiras francesas Alice Domon e Léonie Duquet e outros nove integrantes do grupo foram sequestrados por militares da Marinha.
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