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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Justiça com as próprias mãos: a sociedade e o direito !

Houve um tempo em que o controle social era todo baseado na vingança privada, na regra do mais forte ante a ausência de um Estado fortalecido, a partir da autotutela (autodefesa) ou da autocomposição entre as partes (desistência, submissão ou transação), cuja essência se prestigia mesmo na atualidade.
Não obstante, a parcialidade das decisões foi cedendo espaço para a figura dos árbitros, dos pretores e, por fim, do Estado-juiz, momento em que a justiça que até então era eminentemente privada passa para a gleba da justiça pública. A discussão posta em juízo já não mais se resolve somente entre as partes, pois há a triangularização da relação jurídica, ou seja, há o Estado-juiz entre as partes, mas acima delas.
A despeito da evolução no resolver dos conflitos exsurgentes das relações sociais do dia a dia, ainda atualmente o ordenamento jurídico pátrio (e também de outros países) autoriza a autotutela, como via de exceção. O Código Civil, por exemplo, homenageia o direito de retenção ao possuidor de boa-fé que tenha realizado benfeitorias necessárias no imóvel (art. 1.219CC), o desforço imediato (art. 1.210CC) e o penhor legal (art. 1470CC).
Do mesmo modo, o Código Penal prestigia a autotutela como meio de defesa do indivíduo ao mal injusto causado, não configurando crime a prática do fato cometido em estado de necessidade, legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever legal, bem como no exercício regular de direito, consoante previsão do art. 23 do CP, além da própria prisão em flagrante delito que pode ser realizada por qualquer do povo, conforme se denota da leitura do art. 301 do CPP.
Ademais as possibilidades referenciadas acima, há também a autotutela no direito administrativo, quando o administrador público tem a prerrogativa de anular os atos da Administração eivados de vícios que os tornem ilegais, ou ainda revogá-los por critérios de conveniência e oportunidade (vide súmula 473 do STF e art. 53 da Lei 9.784/99 – Processo Administrativo), bem como no direito do trabalho, a exemplo do direito de greve do trabalhador (arts.  e 37VIII, ambos da CF; Lei 7.783/89 – Lei de Greve).
Nota-se, pois, que o Direito não proíbe de todo a autotutela, reservando-a para casos excepcionais em que a tutela do Estado não pode ou não necessita estar presente.
Inobstante, falece de guarida judicial aquelas ações em que o indivíduo extrapola os limites do homem médio e, ao defender-se de um mal injusto, comete crime mais grave em desproporção àquele sofrido inicialmente, porque não permitidas pelo poder estatal. Por outras palavras, a autotutela é exercida pelo indivíduo, mas ainda assim é uma ação coercitiva do próprio Estado, porquanto prevista em Lei, estando apenas descentralizada. Hans Kelsen assim conceitua:
“Este monopólio da coação está descentralizado quando os indivíduos que têm competência para a execução dos atos coativos estatuídos pela ordem jurídica não têm o caráter de órgãos especiais, funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho, mas é aos indivíduos que se consideram lesados por uma conduta antijurídica de outros indivíduos que a ordem jurídica atribui o poder de utilizar a força contra os violadores do Direito – ou seja, quando ainda perdura o princípio da autodefesa” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 8ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 40).
Igualmente, a autotutela não pode servir de incentivo para a prática de toda sorte de crimes, de modo que a sua aplicação deve ser dada de forma restrita, a fim de que não se retire do Estado o monopólio estatal da jurisdição, sob pena de incorrer no crime previsto no art. 345 do CP, de exercício arbitrário das próprias razões, sem prejuízo de outras cominações legais.
Deste modo, o trabalhador não pode organizar greve que extrapole os seus direitos, fira os direitos do empregador e os direitos do consumidor; o administrador público não pode revogar ou anular atos em inobservância aos direitos adquiridos, à coisa julgada ou ao ato jurídico perfeito; assim como o cidadão não pode agir em desproporcionalidade à resposta contra o mal sofrido, pois estará sujeito a responder pelos crimes que praticar.
Impende assinalar que a autotutela permitida de forma excepcional pelo ordenamento jurídico, sobretudo na seara do direito penal, não pode ser confundida com as ações criminosas e igualmente bárbaras de indivíduos ou grupos de pessoas que se reúnem para fazer “justiça com as próprias mãos”, porquanto se trata notadamente de vingança privada não somente contra o suspeito ou criminoso confesso, mas contra aConstituição e toda a sociedade.
Nesta senda, a (falsa) ideia de justiça com as próprias mãos reflete os instintos mais selvagens e primatas do homem que se pretende moderno. É o momento em que há total abdicação ao “pacto” social, em que o justiceiro faz a sua própria lei, acusador e juiz a um só tempo, algoz que vinga os males cometidos pelos transgressores da lei.
Não se pode olvidar, todavia, que, à medida que o Estado se ausenta da tutela dos direitos dos cidadãos, agrava-se a incidência de condutas criminosas praticadas por cidadãos como forma de fazer (pseudo) justiça. De modo que se faz necessário o aumento da crença no Poder Judiciário para que a ideia repetida por Thomas Hobbes não se concretize e o homem volte a ser o lobo do próprio homem, em supressão do Estado Democrático de Direito.
Afinal, um erro, certamente, não justifica o outro.
Daniel Marques de Camargo. Advogado, Professor Universitário, Mestre em Ciência Jurídica e autor de obras jurídicas diversas.
Hugo Pires. Professor de redação do ensino fundamental e médio, acadêmico de Direito e pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil.

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