É certo que tal discussão já se encontra
submetida ao plenário do Supremo Tribunal Federal no RE nº 635.659, com
repercussão geral reconhecida, cujo julgamento, porém, já conta mais de
três anos, sem perspectiva para conclusão. Assim, diante da ausência de
resposta definitiva do tribunal, e ante a possibilidade de controle de
constitucionalidade em caráter incidenter tantum, o que, aliás, já vem
sendo feito no próprio STF (cf. HC 143798 MC / SP, rel. min. Roberto
Barroso, DJe de 18/05/2017), a questão ainda guarda relevância prática,
revelando-se vívida no juízo criminal.
A hipótese testa a imunização do Direito
contra ideologias. Conceitualmente, o contrato de compra e venda é um
ato jurídico só. Não há compra sem venda e vice-versa, tanto que, na
Itália, utiliza-se um único termo: compravendita. Desse modo, havendo
uma unidade lógico-semântica, não faz sentido, a meu ver, a
criminalização apenas de um polo da relação, mormente quando se leva em
conta que, empiricamente, a grande maioria dos compradores é formada por
consumidores com fins recreativos, e não por usuários patológicos. A
discussão insere-se, no entanto, no âmbito da liberdade de conformação
do legislador. Sob esse enfoque, não havendo razões constitucionais para
tanto, não cabe ao juiz contestar a opção legislativa adotada.
Tem-se, no ponto, justamente aquilo que
Luhmann define como legitimação pelo procedimento. Discorda-se, aqui, da
posição legislativa: a fim de proteger um espectro de viciados
hipervulneráveis, cuja tutela, ninguém duvida, é imprescindível, quer
seja em termos de saúde pública, quer seja em um juízo de
(in)imputabilidade penal, termina-se por desnivelar os polos de uma
mesma relação, praticamente liberando para o consumo uma massa de
financiadores do crime organizado (usuários não-dependentes). Mas, por
outro lado, não se pode taxar de inconstitucional uma solução apenas
porque com ela não se concorda. Não há, aqui, campo para invalidação ou
exclusão (derrotabilidade) da norma jurídica, em ordem a subverter a
ponderação de valores empreendida pelo Poder Legislativo.
Cabe, então, perquirir se, partindo-se da
premissa posta pelo sistema de que comprador e vendedor são faticamente
desiguais e, por isso, devem ser submetidos a regimes jurídicos
distintos, pois, ao que parece, a conduta deste atenta contra a saúde
pública e a daquele não o faz, mostra-se compatível com o regime
constitucional vigente a criminalização de um ato que não desborda para o
âmbito social, atingindo apenas a esfera individual do sujeito. Ou
seja, admitindo-se que a conduta do usuário não é tão reprovável quanto a
do traficante, já que não ofendem os mesmos bens jurídicos, há de se
indagar se há base constitucional para a intervenção do Direito Penal.
Ora, se o bem jurídico tutelado pelo art.
28 da Lei de Drogas é a saúde pública, o mesmo que se pretende proteger
com o delito do art. 33, estar-se-ia incorrendo em inconstitucionalidade
por ofensa ao postulado da proporcionalidade, sob o aspecto da proteção
deficiente (controle de evidência), já que a Constituição traz no art.
5º, inciso XLIII, mandado de criminalização expresso para o tráfico de
drogas – equiparado a crime hediondo e que atenta inequivocamente contra
a saúde pública, repise-se -, de maneira que não faria sentido apenar
com uma advertência uma conduta que também põe em risco o mesmo bem
jurídico. A pretexto de proteger o mesmo objeto, ter-se-ia, de um lado,
um crime com pena cominada de 05 a 15 anos de reclusão e, de outro, um
que atrairia a incidência de uma singela advertência.
Portanto, em uma interpretação
sistemática, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 não pode ser, ao menos
precipuamente, a saúde pública, sob pena de restar chancelada
legislação de carga meramente simbólica. E se chega a tal conclusão tão
somente a partir de um raciocínio lógico-jurídico, seguindo a opção
trilhada pelo legislador, sem que se precise recorrer ao truísmo de que
outras substâncias igualmente danosas ao meio social, como o álcool e o
tabaco, sequer recebem vedação administrativa.
Em assim sendo, mostra-se indisfarçável a
criminalização de algo dado tão somente à saúde do agente e, por
extensão, à sua intimidade e vida privada. Tanto é assim que a própria
lei, ao dispor sobre as atividades de prevenção ao uso indevido de
drogas, alude apenas a aspectos individuais, relacionados ao usuário em
si, sem qualquer menção à tutela da coletividade:
Art. 19. As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
I - o reconhecimento do uso indevido de drogas como fator de interferência na qualidade de vida do indivíduo e na sua relação com a comunidade à qual pertence;
II - a adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações dos serviços públicos comunitários e privados e de evitar preconceitos e estigmatização das pessoas e dos serviços que as atendam;
III - o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas;
IV - o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias;
V - a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas utilizadas;
VI - o reconhecimento do “não-uso”, do “retardamento do uso” e da redução de riscos como resultados desejáveis das atividades de natureza preventiva, quando da definição dos objetivos a serem alcançados;
VII - o tratamento especial dirigido às parcelas mais vulneráveis da população, levando em consideração as suas necessidades específicas;
VIII - a articulação entre os serviços e organizações que atuam em atividades de prevenção do uso indevido de drogas e a rede de atenção a usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares;
IX - o investimento em alternativas esportivas, culturais, artísticas, profissionais, entre outras, como forma de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida;
X - o estabelecimento de políticas de formação continuada na área da prevenção do uso indevido de drogas para profissionais de educação nos 3 (três) níveis de ensino;
XI - a implantação de projetos pedagógicos de prevenção do uso indevido de drogas, nas instituições de ensino público e privado, alinhados às Diretrizes Curriculares Nacionais e aos conhecimentos relacionados a drogas;
XII - a observância das orientações e normas emanadas do Conad;
XIII - o alinhamento às diretrizes dos órgãos de controle social de políticas setoriais específicas.
Desenvolvendo o argumento de que “o porte
de drogas para uso pessoal não afeta a saúde pública, bem jurídico
protegido pelo Direito Penal e que justificaria a punição do tráfico de
drogas, mas apenas, e quando muito, a saúde individual do usuário, não
preenchendo um requisito básico para a incriminação de condutas
[princípio da lesividade]”, Daniel Nicory do Prado estabelece
comparações com outras condutas conhecidas do meio jurídico, deixando
evidente a impropriedade que estou a apontar:
O uso de drogas é só um dos exemplos de comportamento individual arriscado, potencialmente capaz de causar dano ao próprio indivíduo, um ser racional, livre e capaz, que o escolheu. Uma sociedade amadurecida e democrática compreende que os riscos são inerentes à vida adulta e que a intervenção estatal no controle dos comportamentos potencialmente autolesivos não deve se valer do sistema penal, orientado para as ofensas que transcendam a esfera individual.Mesmo Jeremy Bentham, quase sempre lembrado pela infame arquitetura prisional pan-óptica, modelo de vigilância total muito combatido pelo pensamento crítico, já entendia, em sua “Introdução aos princípios da moral e da legislação”, que os atos de prudência, que consistem na promoção da própria felicidade, devem ser deixados à ética privada, cabendo ao legislador, no máximo, impor leves censuras a comportamentos evidentemente autolesivos.Isso vale inclusive para aqueles atos com repercussão social direta ou indireta, que continuam excluídos do alcance da intervenção penal, mesmo quando as condutas de terceiros, a eles relacionadas, são incriminadas com severidade. São exemplos desse tratamento a prostituição, em que o ato de se prostituir é atípico, mas comete crime quem a explora, induz ou favorece (arts. 228 a 230 do Código Penal); o jogo de azar, em que a exploração e o favorecimento de jogos e loterias não autorizadas são definidos como contravenção penal, mas a ação do apostador está sujeita somente à pena de multa (arts. 50 a 58 da Lei de Contravenções Penais); e o suicídio, em que a tentativa de supressão da própria vida é atípica, mas constituem crime o induzimento, a instigação ou o auxílio à prática (art. 122 do CP). (De Drogas e Democracias in Boletim IBCRIM, outubro de 2012, disponível no site www.ibccrim.org.br)
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