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segunda-feira, 30 de maio de 2016

O flagrante que durou 32 horas !

Por Anderson Figueira da Roza
Recentemente tive a oportunidade de trabalhar no acompanhamento de um auto de prisão em flagrante que iniciou pelas 17 (dezessete) horas de uma sexta-feira e só veio a terminar durante a madrugada de sábado para domingo. Isso quer dizer que todas as atividades relacionadas a este episódio somaram aproximadamente TRINTA E DUAS HORAS de trabalho.
O caso em si revela o risco na realização de negócios mal feitos entre particulares, que muitas vezes acabam seduzidos por falsas vantagens, e como não dispõem de efetivos mecanismos de controle efetivos sobre tudo que pode ser lícito e ilícito no mercado.
Meu cliente é um empresário, proprietário de negócios na atividade noturna e também de estacionamentos privados. É uma figura simpática e carismática, logo, está sempre rodeado de amigos. Há um tempo, um conhecido seu lhe ofereceu a oportunidade de comprar um automóvel de luxo com possibilidade de parcelamento direto após alguns meses e que a transferência de propriedade do automóvel em questão se daria quando do término do parcelamento. Os documentos do automóvel estavam em dia, o carrão era um arraso, oportunidade de um bom negócio.
O detalhe é que este conhecido seu, não era o real proprietário do automóvel, mas tinha uma procuração para efetivar a venda, de caráter irrevogável e irretratável. Para fechar o negócio fez rápidas consultas ao site do Detran de onde o automóvel estava emplacado e tudo estava regular. Concretizou o acordo, fazendo um bom pagamento na entrada e o restante em algumas parcelas.
Durante o último verão inclusive, foi parado em algumas fiscalizações nas estradas em deslocamento para o litoral e apresentou os documentos do carro, e nada de anormal lhe fora apontado nestas abordagens.
Para sua surpresa, numa sexta-feira estava no escritório do seu estacionamento privado e teve a “visita” de policiais militares que chegaram ao local, alegando que tinham uma denúncia de que naquele pátio havia um automóvel clonado. Para a sua surpresa, era o referido automóvel narrado anteriormente. Configurado o “flagrante”, os policiais militares fizeram uma severa busca no escritório, avisando aos funcionários do local que ficassem quietos e não chamassem ninguém, que a partir daquele instantes estavam todos presos.
Dentro do gabinete do meu cliente, encontraram duas armas e instrumentos de prática de paintball, uma pistola particular com registro de um segurança do local, que é policial militar e trabalha pelas madrugadas, mas que naquele dia deixou dentro de um armário. Juntaram tudo isto em cima do capô do carro clonado, bateram as fotos com a identificação do batalhão, algemaram meu cliente, e disseram a todos que o proprietário seria levado junto com o carro e as armas para a Delegacia de Pronto Atendimento. Fui contratado logo em seguida pela esposa do empresário, ao qual me relatou sobre tudo que foi apreendido, já indiquei que ela providenciasse toda a documentação referente à compra do automóvel, das armas de paintball, e também o contato do colaborador proprietário da arma de fogo, enquanto isso eu estava em deslocamento para a Delegacia.
Por coincidência cheguei praticamente junto com meu cliente, já me apresentei, e a Delegacia estava lotada de policiais militares com diversos outros presos de tudo quanto é delito. Os atendimentos e registros deveriam ser feito por ordem de chegada, poucos policiais civis para atender, tudo já indicava que a noite seria longa.
Enfim, deu tempo para a esposa do meu cliente juntar toda a documentação pertinente e chegasse no local, e o registro da ocorrência deste caso começou a ser feito após a meia-noite tendo sido concluído por volta das 3 (três) horas da madrugada. Pelo entendimento da Delegada Plantonista, o problema não era o carro, mas sim o uso do documento “falso” do automóvel, que isto era um crime muito mais grave, com pena acima de 4 (quatro) anos e não seria possível arbitrar fiança na delegacia.
Ou seja, meu cliente estava preso por um carro que ele comprou com a documentação em dia, por uma arma que já havia sido indicado e localizado o proprietário. Tudo isto seria encaminhado ao Plantão do Foro, e agora caberia apenas um pedido de relaxamento de prisão e/ou pedido de liberdade provisória. Fiz estes pedidos ainda na Delegacia. Deixei no Foro por volta de 4 (quatro) horas da madrugada. De hora em hora fui ligando e nada da Auto de Prisão em Flagrante ter sequer chegado no Foro.
Por volta de 8 (oito) horas da manhã de sábado fui ao Foro e o atendente do Plantão me assegurou que a Delegacia não havia encaminhado os Autos de Prisão em Flagrante daquela madrugada ainda, mas que deveria chegar ainda pela manhã, porém, seria a nova equipe de Plantonistas é que vai receber esta documentação, pois pelas 9 (nove) horas da manhã há a troca de Plantão. Para quem já trabalha na advocacia criminal, esta informação não é normal, pois é comum no mínimo haver uma entrega de flagrantes pendentes pela madrugada pelas 6 (seis) horas da manhã.
Enquanto isso, a esposa do meu cliente me ligava de hora em hora também para saber do resultado, que nem sequer havia iniciado no Foro. Saí do Foro e fui para a Delegacia novamente, houve uma troca de plantonistas também na Delegacia neste meio tempo.
Nessas horas, você tem a certeza que o mundo está ficando de cabeça para baixo, que o sistema está à beira do caos. Primeiro porque o Presídio da cidade está tão lotado, que não há mais vagas, e que os presos em flagrante daquele final de semana ficariam nas celas da delegacia mesmo. Segundo, o plantonista da delegacia me informou que a pedido do plantonista do Foro, não encaminhasse como de costume às 6 (seis) horas da manhã os autos de prisões em flagrante (que eram vários), pois se chegasse no Foro, entre a autuação, preparação de pareceres, despachos, expedição de ofícios, ninguém sairia no horário da troca de plantão. Mas ele me deu um sorriso, e disse que meu cliente estava sendo bem tratado e que seguramente até às 10 horas da manhã, todos os flagrantes estariam no Foro.
Obviamente me certifiquei ligando para o Foro, logo depois das 10 (dez) horas da manhã, e de fato os flagrantes já estavam lá, mas que como eram muitos, eu retornasse a ligação bem no final da tarde, início da noite. Nestas alturas, já não é mais somente a esposa do teu cliente que vai te ligar o sábado inteiro, mas os melhores amigos dele, parceiros de negócios, etc, todo mundo passa a ter o telefone do advogado em questão e de tempos em tempos um número desconhecido te liga e quer saber sobre o desenrolar do caso. Dei um tempo, almocei com meus familiares, cabeça longe, aquelas coisas de profissionalismo 24 horas por dia. Como não recebi ligação do Foro, decidi às 17 horas da tarde ir diretamente ver o despacho, ou na pior das hipóteses aguardar no saguão do Foro, caso ainda não estivesse pronto.
Chegando lá, fui atendido por um rapaz extremamente gentil, e identifiquei o caso em que eu queria saber da decisão, ele já me conhecia e me disse: Dr. Eu nem lhe liguei, chegou a pouco, mas sinto informar que seu cliente vai ficar preso e amanhã às 9:50 horas da manhã já está agendada a audiência de custódia do seu cliente no Presídio. Rapidamente pensei, meu cliente está preso com quase 20 (vinte) pessoas numa cela dentro de uma Delegacia, o Presídio não tem vagas, e a Polícia não vai levar essa gente toda para o Presídio para uma audiência de custódia. Pedi então para ver o despacho.
Na verdade, o despacho havia concedido a liberdade provisória do meu cliente, mediante algumas condições de praxe, como se apresentar bimestralmente no Foro e informar onde mora e trabalha, não se ausentar da cidade por mais de 30 (trinta) dias sem comunicar o juízo, e uma fiança de praticamente a metade do valor do automóvel apreendido. O valor arbitrado na decisão foi justificado pelo preço do carro. Neste momento chamei a atenção do plantonista, e disse havia a concessão da liberdade provisória, mediante algumas condições. Quando ele me respondeu que por isso nem tinha me incomodado ainda, afinal era sábado de noite, bancos fechados e tal, com aquele valor de fiança, o Foro exige somente depósito em dinheiro em espécie, julgou que não iria ter como arrecadar tamanha quantia a tempo, logo, na visão dele, meu cliente ficaria “preso” mesmo.
Perguntei se por acaso o Juiz estava no gabinete, realmente era sábado início da noite, e levantar aquela quantia em dinheiro não seria nada fácil, principalmente porque há limites de saques nos finais de semana. Mas fui informado que o Juiz plantonista depois dos diversos despachos em sequencia durante a tarde, tinha saído, mas que logicamente voltaria daqui umas duas ou três horas no máximo.
Então, liguei para a esposa do meu cliente, informei o teor da decisão, e o valor da fiança, e que deveria conseguir em dinheiro, e em duas ou três horas ainda, pois seria o tempo de voltar a falar com o juiz. Ela me disse que seria muito difícil, que seguramente não tinha esse dinheiro em espécie em casa. Mas que iria atrás de seus parentes, amigos mais próximos e clientes.
Neste meio tempo, voltei na Delegacia para conversar com o cliente e informá-lo sobre esta decisão, sobre o valor da fiança, sobre caso não houvesse jeito, ele tinha audiência de custódia marcada para a manhã seguinte, porém certamente ele não participaria da solenidade, visto que não levariam toda aquela gente para aquela audiência num presídio, que não tinha vagas naquele momento. Ele ficou perplexo, estava muito abatido, cela lotada de gente, mas me indicou ainda pessoas que lhe deviam favores e dinheiro, e que poderia cobrá-los, pois realmente precisava mais do que nunca de dinheiro em espécie para sair de lá.
Em duas horas, e esposa do meu cliente conseguiu me entregar um pouco menos da metade do valor arbitrado da fiança, peguei aquele pacote de dinheiro e fui ao Foro, aí você só torce para não sofrer uma abordagem policial, um assalto, nada. Entrei no Foro novamente, falei com o Plantonista, e disse, olha não tenho todo o dinheiro da fiança, mas tenho perto da metade, e devido a ser um final de semana, preciso propor uma forma de pagamento ou conversar com o juiz sobre este valor (já tinha uma petição pronta pedindo a reconsideração do alto valor), apresentando o montante arrecadado naquele momento e se comprometendo a saldar a diferença logo em seguida. Felizmente ele entendeu e aceitou a fiança nestes moldes, recolheu o dinheiro e determinou a contagem e depósito do dinheiro, e mandou expedição do alvará de soltura.
Comentei na saída do Foro se por acaso teriam ocorrido solturas nos flagrantes, ele me afirmou que sim, que já tinha até encaminhado alguns alvarás de soltura para a Superintendência de Serviços Penitenciários de outros casos. Achei estranho, pois havia visto praticamente todas as pessoas presas da madrugada nas celas no sábado à noite, mas o que importava agora era a liberação o quanto antes do meu cliente.
Sai de lá, avisei a esposa do meu cliente, que ele deveria ser solto nas próximas horas, fui para a delegacia, aguardar a soltura. Cheguei primeiro, pedi para falar novamente com o meu cliente, o que dessa vez não me deixaram, visto que estavam com poucas pessoas na delegacia, e eles (os presos) deveriam estar dormindo (quem conhece uma cela de delegacia sabe que ninguém dorme um minuto com ela vazia, imaginem lotada), e como ele iria ser solto, não justificaria fazer essa dupla movimentação. Logo em seguida, chegou a esposa do meu cliente e ficou aguardando comigo.
O plantonista da delegacia me informou que não tinha recebido nenhum alvará de soltura naquela noite ainda. Novamente o sistema a beira da falência pegando todos de calças curtas, aí a experiência ajuda muito. Liguei para o Plantonista do Foro e expliquei que algo devia estar errado, e que provavelmente aqueles presos do final de semana ainda não tinham sido levados ao Presídio, logicamente não estariam no cadastrados no Sistema da Superintendência de Serviços Penitenciários, então o jeito era encaminhar o alvará de soltura diretamente para a Delegacia, o que ocorreu em instantes. Nessas alturas eu já estava resolvendo o problema do meu cliente e de alguns que já deveriam ter sido soltos anteriormente, mas provavelmente por obra do trabalho de defensores públicos ou de advogados mais novos que fazem um trabalho difícil, mas que não acompanham passo a passo o desenrolar do caso.
Daí pra frente é o tempo de esperar a retirada o sujeito que vai ser libertado, colocar em mais uma espera enquanto prepara a documentação para sua liberação, e isso sempre leva bastante tempo para quem espera do lado de fora, imaginem para quem deve sair.
Enfim, levaram-se ainda cerca de duas horas até finalmente colocarem meu cliente em liberdade naquela madrugada. Hora de voltarmos para as suas casas, de descansar um pouco e curtir a família aquele domingo que amanheceria em breve.
Atualmente o caso está mais calmo, a investigação agora é com acusado solto, o que não tem prazos tão rígidos para seu andamento e conclusão.
Ficam lições de que o advogado é sempre a última resistência diante do poder estatal numa atuação em prisão em flagrante, o Estado com todo seu aparato, é gigante, extremamente burocrático, com muitos servidores que fazem determinadas e específicas funções, muitas vezes sem entender o funcionamento de todo o sistema de que se necessita para solucionar um caso. O advogado é quem vai dialogar com o policial militar, o policial civil, o delegado, os servidores público, o Promotor, o Juiz, etc. Literalmente uma guerra de um contra todos.

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