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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Maconha: 3 gramas no Supremo !

Maconha 3 gramas no Supremo
Encontra-se na pauta do STF do dia 13 de agosto a discussão sobre a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo próprio (art.28 da Lei 11.343/2006).
O caso foi levado até o Supremo pela Defensoria Pública de São Paulo após a condenação de um homem a dois meses de prestação de serviço à comunidade por ter sido flagrado portando três gramas de maconha (Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 635.659/SP).
Não será a primeira vez que o Supremo decide sobre o tema. No primeiro julgamento (RE 430.105-9-RJ), ocorrido no ano de 2007, o relator, ministro Sepúlveda Pertence, considerou o usuário de drogas como criminoso. Afirmou o ministro:
De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade.
O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento - antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º e L. 9.605/98, arts. 3º; 21/24 - da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.
Esse o quadro, resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (CP, art. 107III).
Na RGRE 635.659/SP que está na pauta para julgamento do STF discute-se se a conduta prevista no art. 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto na CF, em seu art. X. Se reconhecida a violação, também se encontra afetado importante princípio do direito penal: princípio da ofensividade (ou lesividade).
De acordo com o princípio da ofensividade, “só é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende (tão-somente) bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato típico). Ex.: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios etc. É exatamente na transcendentalidade da ofensa que reside o princípio da alteralidade (a ofensa tem que atingir terceiras pessoas).”[1]
O tema envolve questões para além da jurídica: o que fazer com o usuário de drogas? A grande maioria dos estudos criminológicos conclui no sentido de que o usuário não deveria nunca ser um problema do direito penal. Já no campo da política criminal há correntes criminalizadoras (pena de prisão), despenalizadoras (sanção penal, sem pena de prisão), liberalizantes (é um problema individual de cada pessoa, tanto quanto o álcool e o fumo), de redução de dano (é um problema de saúde pública, não penal) e terapêuticas (o tratamento obrigatório seria o melhor caminho).
Do ponto de vista eminentemente penal, desde que entrou em vigor a Lei11.343/2006, a doutrina (a ciência penal) discute a natureza jurídica do art. 28, que eliminou a pena de prisão ao usuário. Isso significou descriminalização (retirou a conduta do campo do direito penal) ou somente de despenalização (eliminação da pena privativa de liberdade)?
Sobre o tema, venho manifestando-me desde a primeira edição da obra Lei de drogas comentada (2007) que se trata de descriminalização. Reproduzo abaixo o trecho que traz a fundamentação do meu ponto de vista:
“O art. 28 não pertence ao Direito penal, sim, é uma infração do Direito judicial sancionador, seja quando a sanção alternativa é fixada em transação penal, seja quando imposta em sentença final (no procedimento sumaríssimo da lei dos juizados). Houve descriminalização substancial (ou seja: abolitio criminis).
Para dar sustentabilidade a essa tese podem ser invocados os seguintes argumentos:
(a) não obstante o art. 28 da Lei 11.343/2006 encontrar-se inserido no capítulo denominado “Dos crimes e das penas”, em alguns dos dispositivos legais, quando se faz referência às consequências a serem impostas ao usuário (art. 28, III, art. 28, § 1.º; art. 28, § 6.º e art. 29), a mesma Lei fala em “medidas” ou “medidas educativas”;
(b) duas das consequências previstas no art. 28 (advertência e encaminhamento a programas educativos) não possuem nenhuma carga aflitiva, ao contrário, têm natureza puramente educativa. A outra (prestação de serviço à sociedade) possui duplo caráter (educativo e repressivo);
(c) nenhuma das consequências quando aplicadas em razão de transação penal (art. 48, § 5.º) gera reincidência ou antecedentes, ou seja, impostas em transação penal não geram nenhuma consequência relacionada com o Direito penal;
(d) normalmente a concretização de uma transação penal impede que outra seja feita no lapso de cinco anos. Mas essa regra não vale para o caso do usuário, que conta com disciplina própria e pode levar adiante várias transações penais, mesmo dentro daquele período de cinco anos (art. 28, § 4.º);
(e) havendo descumprimento da transação ou da sentença condenatória as únicas medidas cabíveis são: admoestação verbal ou multa (art. 28, § 6.º). Isso evidencia, de modo patente, que todas as medidas impostas ao usuário de drogas refogem da estrutura e da sistematização do Direito penal;
(f) a qualquer tempo elas podem ser substituídas, ouvidos o Ministério Público e o defensor (art. 27). Isso reforça o caráter educativo ou ressocializador dessas medidas;
(g) a natureza jurídica da sentença condenatória (no caso de não ter havido transação penal) é idêntica à da proferida em ação de improbidade administrativa, isto é, não se trata de sentença condenatória que produza efeitos penais, sim, de sentença que gera outras consequências, típicas do Direito judicial sancionador;
(h) o fato de a sentença ser emanada de um juiz criminal não é suficiente para conduzir à conclusão de que a sentença é de natureza penal. O juiz criminal não está impedido de contar com competências em outras áreas. A Lei 11.340/2006 (Violência contra a mulher), com efeito, prevê a possibilidade de o juiz criminal tratar de questões cíveis (no caso de medidas protetivas de urgência), sem que isso venha a desvirtuar a natureza de suas decisões (Lei 11.340/2006, art. 33);
(i) cada sentença possui os efeitos jurídicos que são dados pela lei ou pelaConstituição. No caso do usuário de drogas criou-se toda uma disciplina jurídica específica, que diverge completamente do ordenamento jurídico geral;
(j) a fixação da competência do JECrim em relação ao usuário de drogas é ato de discricionariedade legislativa. Ela é razoável (já que deixa ao encargo do judiciário a classificação uso/tráfico, de acordo com os parâmetros estabelecidos no art. 28, § 2.º) e não contraria nenhuma norma constitucional;
(l) concluindo tratar-se de posse de drogas para o consumo pessoal, tendo em vista que não houve a legalização da conduta, mas sim a sua descriminalização (abolitio criminis), realmente devem ser estabelecidas consequências ao usuário, as quais podem ser aceitas desde logo por ele (transação) ou estabelecidas pelo magistrado (em sentença condenatória, de natureza sui generis);
(m) em qualquer das hipóteses as consequências possíveis são de natureza educativa;
(n) isso se constata facilmente quando se percebe que duas delas (admoestação e encaminhamento a programas educativos) são voltadas exclusivamente para o próprio usuário, na busca de fazer com que ele possa superar a sua condição; a outra (prestação de serviço à comunidade), ainda que não voltada diretamente para a reeducação do usuário, possui, como já dito, natureza híbrida (cunho educacional e cunho repressor). É importante destacar que a prestação de serviço deve ser cumprida em local que se ocupe, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas (art. 28, § 5.º);
(o) não obstante o art. 28 encontrar-se inserido em um capítulo denominado “Dos crimes e das penas”, ele faz parte do Título III da Lei, que trata “Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. As medidas de repressão somente são encontradas no Título seguinte e são dirigidas, exclusivamente, à produção e ao tráfico de drogas;
(p) a preocupação com a prevenção, a atenção e a reinserção social do uso indevido é a marca distintiva da nova Lei. Ela rompe com as anteriores por tratar a fundo essas questões, dedicando, inclusive, a ela, trinta dos seus setenta e cinco artigos;
(q) dentre tantos outros aspectos preventivos, pode ser lembrado a criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, o qual não se coaduna com o discurso anterior de “combate às drogas”. Até o nome que comumente tem-se usado ao fazer referência à lei (“Nova Lei Antidrogas”) encontra-se equivocado, já que a tônica, agora, no que se refere às drogas, desloca-se do “combate” para privilegiar a prevenção;
(r) a aplicação das medidas preventivas de não uso, retardamento do uso e redução de danos previstas na Lei (arts. 20 a 26) são, por natureza, incompatíveis com a ideia de criminalização do uso. O mesmo se diga em relação ao tratamento. Várias dessas estratégias, para melhor alcançar seus resultados, necessitam da colaboração do usuário, o que, dificilmente se conseguiria, caso houvesse a rotulação do usuário como criminoso. A partir de tal preocupação poder-se-ia evitar a transformação do tóxico-dependente em tóxico-delinquente;
(s) para que uma conduta venha a ser considerada criminosa ela deve ofender de forma grave, concreta, intolerável e transcendental um bem jurídico relevante (Luiz Flávio Gomes). É sabido que o usuário de drogas acaba por alimentar o comércio ilícito. Se não houvesse demanda não haveria oferta. No entanto, tal situação não é suficiente para se criminalizar o uso. É fato também que as pessoas degradam o meio ambiente quando utilizam determinados produtos (a utilização doméstica de inseticidas é um bom exemplo). Isso, entretanto, não faz com que tal conduta venha a ser objeto de criminalização;
(t) no caso do usuário de drogas, seu comportamento causa uma afetação a um bem jurídico pessoal (saúde individual). Nessas situações, o Direito penal não se encontra legitimado a atuar, sob pena de desrespeito a direitos fundamentais da pessoa humana, no caso, autonomia e liberdade. São as chamadas zonas livres do Direito penal (Arthur Kaufmann), que se constituem em áreas de contenção jurídico-penal, nas quais as decisões são deixadas ao alvedrio das consciências dos envolvidos, impondo-lhes consequências distintas das penais, quando violada a norma;
(u) tudo o que acaba de ser exposto evidencia que em relação ao usuário de drogas algumas consequências são pertinentes, de qualquer maneira elas hão de se distanciar do direito repressivo, por lhes faltar requisito (s) legitimador (es);[2]
(v) é razoável, assim, que o uso de drogas fique circunscrito ao âmbito do Direito judicial sancionador."[3]
Resta-nos aguardar o julgamento do Supremo. Depois disso, voltaremos a tratar do tema. Até lá.
[1] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal: parte geral. V. 1, Salvador: Juspodvm, 2015.
[2] Cf. Bianchini, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: RT, 2002.
[3] BIANCHINI, Alice. CUNHA, Rogério Sanches. GOMES, Luiz Flávio. OLIVEIRA, William Terra de. Lei de drogas comentada. 6. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: RT, 2014, p. 129-132.

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